Saturday, April 19, 2008

FIO DE SANGUE

Deixem-me só como estou:

rodeado de mim, cheio de mim

agarrado a mim

(desesperadamente agarrado a mim)

os dedos cravados numa alma nua

(angustiadamente nua)

e um fio de sangue a escorrer

invisível, imperceptível

terrível

como a sensação brusca e forte

de lançar os braços à lua

e agarrar, por engano, a morte.



Estou cheio, senhores, estou cheio

deste pseudo-amor do mundo

desta ternura-não de tudo

deste tédio-mais-que-tédio de sombras iluminadas

a fingir pessoas em carne e osso

de mãos estendidas e coração aberto.



Não, não posso!

É tudo demasiadamente certo

para que ame o nojo em que me roço.



Ah, desesperada solidão

de querer o mundo todo nos braços

e sentir o coração

em pedaços!

Abraçá-lo! Abraçá-lo!

E ter na boca um travo negro

de despeito

e ter nos olhos um brilho doce

de humanidade

e ter a alma nua, a alma nua

(angustiadamente nua)

e um fio de sangue a escorrer

da cor da vida.



É por isso que eu quero estar só.

Pois, é por isso!

É por isso que eu quero estar só

agarrado às traves da minha angústia

que é a angústia de todos nós

do tamanho desta noite intemporal.



Não, que ninguém me diga nada

absolutamente nada!

O tempo há-de passar

como passam as rosas e os ciprestes.

E nós havemos todos de acordar

talvez de mãos unidas e alma descarnada

a sorrir às pedras.

Mas não me digam nada!



* * *



Há do lado de lá da vida

um caminho verde e virgem

e uma marcha de silêncio perde-se

para além das nuvens.



M. Vaz Sousa



P.S. - Creio que é interessante referir que este poema foi escrito no já longínquo ano de 1963

e que foi seleccionada para abrir os meus "posts" pela referência aos CIPRESTES.

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